segunda-feira, dezembro 18, 2006

Partilho convosco este texto, caso não o tenham visto já, que merece ser lido.
É um dos melhores artigos de opinião que vi até agora sobre o aborto.
870
José Diogo Ferreira Martins - Cardiologista pediátrico
In Público - 12. 12. 2006
A"questão do aborto" em Portugal é uma história já adulta. Há mais de 20 anos, quando alguns dos actuais eleitores não eram sequer nascidos, a discussão centrava-se à volta do início da vida humana. Por um lado, os pró-vida argumentavam que esta começava no princípio, na concepção. Por outro lado, os pró-escolha defendiam que ninguém sabia quando começava a vida humana, e um "conjunto de células" nas primeiras semanas de gravidez não o era certamente. Os dados científicos eram escassos e havia um grande desconhecimento sobre o desenvolvimento do feto.

Há oito anos o primeiro referendo sobre a IVG (interrupção voluntária da gravidez em PPC, português politicamente correcto) mostrou uma clivagem entre a opinião pública e a publicada: teve uma abstenção superior a 70 por cento e o "não" ganhou.

Nos últimos oito anos assistimos a várias tentativas de colocar a questão do aborto na agenda política. O "flagelo do aborto clandestino" foi considerado argumento principal, apesar de os escassos e incompletos dados oficiais mostrarem um número reduzido de internamentos por complicações de aborto fora do quadro legal (1426 internamentos em 2004, 89 por cento por aborto incompleto ou retido, apenas 56 infecções e ausência de mortalidade; dados da Direcção-Geral de Saúde). Foi-nos repetidamente perguntado se queríamos "mandar as mulheres para a prisão". Contudo, as poucas mulheres julgadas até hoje tinham todas abortado com mais de dez semanas de gravidez e daí não resultaram penas de prisão. A eventual legalização do aborto até às dez semanas "por opção da mulher" criminaliza-o a partir das dez semanas e um dia, pelo que estas questões da humilhação, julgamento e eventual condenação se mantêm a partir daí.

A mãe deve ser compreendida e ajudada, mas não podemos desviar a nossa atenção da outra vida em questão, a do feto, que, por ser frágil e indefesa, depende da nossa protecção. Porque actualmente, passados mais de 20 anos, já não pode ser dito que o feto não é vida, pois a ciência mostrou-o de um modo claro e comovente. Pode causar surpresa a alguns, mas é hoje consensual entre a comunidade científica que, às dez semanas (para aplicar o limite arbitrariamente proposto pelo actual referendo), o tal "conjunto de células" se encontra organizado de um modo que é impossível não ser reconhecido como um ser humano.

Avanços recentes na cardiologia fetal mostram que o desenvolvimento do coração ocorre entre as três e as seis semanas de gestação, e que por volta do 20.º dia este já bate. Entre a 8.ª e a 9.ª semana, o coração está formado com as estruturas cardíacas, ocupando já as posições e realizando as suas funções definitivas. Às dez semanas, o coração do feto assemelha-se muito ao coração adulto, quer externa, quer internamente. As mais delicadas estruturas cardíacas, como os milimétricos folhetos da válvula aórtica, estão formadas e vão continuar a sua maturação e diferenciação. Às dez semanas, a função circulatória está estabelecida e só vai alterar-se após o bebé nascer, com a adaptação à respiração. O coração bate com regularidade e variabilidade, e a complexidade das funções sistólica e diastólica é comparável à dos adultos.

Sem estigmatizar as grávidas, antes acolhendo-as e aos seus bebés, é nosso dever como profissionais de saúde tornar as "barrigas transparentes", de modo a ajudar os portugueses a compreender que lá dentro está uma pessoa, que, se tiver dez semanas de gestação, tem um coração que bateu 870 vezes durante a leitura deste artigo.

1 comentário:

Pipos disse...

O artigo ta espectacular, ja tinha lido o artigo pq o Ze Diogo (casal de Lisboa), tinha mandado pros nossos mails. é sem duvida dos melhores artigos... e já ouvi o zé diogo a falar num debate do Não e foi muito bom tb, ele domina este tema como poucos.