Cá vai então a minha resposta muito atrasada ao Silveira sobre a questão do papel de Deus nas nossas vidas.
Para quem não leu o que vai para trás (essencial para compreender aquilo que vou escrever), sugiro que vejam os comentários ao seguinte post no blog dos senzas.
João, recordas-te com certeza que tudo isto começou por eu dizer que não acredito que exista uma pessoa (cara metade, alma gémea, etc.) destinada a cada um de nós, ou pelo menos a cada um daqueles que se sente chamado à vocação do matrimónio.
Ao dizê-lo, estava a dizer que a Ana não me estava “destinada”, no sentido em que outras pessoas tinham argumentado anteriormente. Casei-me com a Ana, mas imagino que, caso a minha vida tivesse sido diferente (bastava eu não ter aceite o convite para ser RI das EJNS), talvez me tivesse casado com outra pessoa e fosse igualmente feliz, e a Ana idem aspas.
Por conseguinte, argumentei que não faz muito sentido dizer que o meu casamento fazia parte de um grande plano de Deus para a minha vida, pelo menos no sentido em que Deus mexe os cordelinhos para que eu me encontre com a Ana e me case com ela.
Porque no fundo é disso que estamos a falar, dizer que a Ana estava destinada por Deus, desde o princípio do mundo, para se casar comigo, implica que Deus teve uma parte activa em todas as condicionantes que levaram isso a acontecer. Ou seja, Deus fez com que eu fosse concebido num certo dia, e a Ana noutro, fez com que os meus pais regressassem para Portugal do Canadá, fez com que decidissem voltar para Lisboa do Porto, fez com que eu conhecesse as EJNS e me integrasse. Mais, fez com que eu fosse convidado para o Secretariado Internacional, e daí fez com que eu fosse convidado para ser Responsável. E atenção que estas são só as coisas simples, porque para eu nascer, foi preciso que a minha mãe tivesse um desmancho antes de ficar grávida de mim, isso também teve dedo de Deus?
Claro que Deus não fez abortar um filho da minha mãe só para que eu nascesse. Diria que isso é completamente evidente. Mas então como é? Deus adaptou-se à situação quando ela aconteceu? Então e se eu tivesse morrido num acidente antes de encontrar a Ana, ela ficava solteira para o resto da vida? Ou casava-se com outro? Mas então não seríamos obrigados a dizer que, por a Ana ter casado com outro, foi necessário eu ter morrido, logo Deus quis que eu morresse?
Então dir-me-ão que Deus não lida com as coisas desta maneira. O Senhor, no essencial, coloca as peças em movimento e acompanha o seu desenvolvimento. Mas então, dizer que Deus planeou que eu me encontrasse com a Ana faz tanto sentido como dizer que eu planeei que o Sol nascesse hoje de manhã, e que a prova disso é que nasceu mesmo.
Tentei explicar que a minha opinião é outra. Certamente a vontade de Deus tem aqui um papel. Resumidamente Deus quer-me santo, e quer a Ana santa, e na medida em que eu e a Ana procurámos conformar a nossa vontade à Dele, fomos progredindo em direcção à santidade (um caminho longo e difícil), e que quando nos conhecemos e nos apaixonámos, percebemos que a nossa união era uma forma de levar a bom porto esse plano que Deus tem para nós, esse sim, o da santidade.
Ou seja, nem as coisas aconteceram “por acaso”, nem porque Deus andou a mexer cordelinhos ao longo dos tempos, para que eu me casasse com aquela pessoa em particular. Nesse sentido sim, é difícil para mim, como dizes: “entender que Deus leva em conta todas as variáveis para juntar duas pessoas”.
Em contrapartida, já não me custa nada acreditar que Deus, por estar fora do tempo, sempre soube que eu e a Ana íamos casar, que a minha mãe ia ter um desmancho, que o meu avô iria sobreviver à guerra, ao contrário de dois dos seus irmãos, e que, e que e que…
Mas soube essas coisas sem ter que interferir na história para que elas acontecessem.
Quer isto dizer que Deus não intervém, ou está impedido de intervir na história? Não! Mas a essas intervenções, quer demos por elas ou não, chamamos milagres. Abundam, graças a Deus (quem mais?), e mostram o quanto Deus nos ama. Até acredito que em alguns casos particulares Deus interfira directamente na nossa história para que duas pessoas se conheçam, como sei que intervém por vezes para salvar vidas e curar doentes terminais, mas daí a dizer que para todos nós Deus tem um par perfeito reservado, é um grande salto.
Portanto, por tudo o que escrevi acima, não concordo contigo quando dizes que a minha argumentação implica que “apenas poderás agradecer [a Deus] a tua existência, porque tudo o que aconteceu daí para diante deveu-se às tuas decisões”. Compreendo que os meus argumentos possam ser levados nesse sentido, mas isso ignora a importância do meu esforço de conformar a minha vontade à vontade de Deus, e ignora o papel do Paráclito, o Espírito Santo que, sem me impor decisões, me aconselha em momentos de dificuldade. Por tudo isso posso agradecer a Deus e sei que a minha vida teria sido outra, bem pior, não fossem esses factores.
Repara que eu concordo contigo quando dizes que “vejo mais a vontade de Deus em todos os metros desse meu caminho, em todas as decisões que tomo, por mais ínfimas que sejam”, mas vejo-o dessa forma, através da suave sugestão, da iluminação da minha vontade, porque Deus me ama demais para retirar a livre vontade que me deu, ama-me demais para condicionar as minhas decisões, ama-me demais para me obrigar a ser feliz, sabe que essa felicidade só fará sentido se for eu a conquistá-la, que só assim será simultaneamente felicidade e santidade.
Queria também abordar aquilo que escreves sobre o mal, porque me parece que a tua visão não é correcta. Tu escreves:
“A vontade de Deus pode ser causar o mal? Absolutamente, claro que não. Mas aí teremos que definir o que é mal e o que é bem. Um cancro é mal? Sofrer é mal? Ou apenas o pecado é mal?”
Sim, o pecado é o verdadeiro mal, por assim dizer. Afinal é o pecado que nos afasta de Deus, e nada há pior que isso. Mas daí a dizer que apenas o pecado é mal? Parece-me descabido.
O pecado é mal, mas o cancro também… aliás, não é por acaso que o Génesis nos diz que a doença e a morte entraram no mundo por causa do pecado, há algo a aprender aí.
A doença pode-me aproximar de Deus, ajudar-me a reavaliar a minha vida, a ser uma pessoa melhor? Pode. Mas isso não faz com que a doença seja uma coisa boa, significa, isso sim, que eu retirei de uma situação má um fim bom. É essa a história de Cristo, que pegou em todo o mal do mundo, todos os nossos pecados, e transformou-o em salvação.
Escreveste: “Recordando as palavras de Nossa Senhora aos pastorinhos, em Maio: “Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em acto de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de suplica pela conversão dos Pecadores?”
Nossa Senhora, como “porta-voz” de Deus propõe o sofrimento àquelas crianças. Pode Deus propor o mal? Não me parece. Então aquilo tem que ser bem.”
Sugiro que não leias os diálogos de Nossa Senhora com os pastorinhos de forma literal. Lembra-te que Ela estava a falar com crianças, e não pondo em causa o espírito de nada do que lhes disse, convém ter em conta a sua linguagem seria aplicada a essa situação.
Também não é por eles terem visto uma imagem do inferno que devemos acreditar que o inferno é mesmo como eles o descreveram, com chamas e tudo.
Não ponho em causa a possibilidade de transformar o sofrimento em acto de reparação pelos pecados, mas não acredito que as doenças que vitimaram os pastorinhos foram “enviados” por Deus. Acredito, isso sim, que Ele sabia que o Francisco e a Jacinta iam ficar doentes, que sofreriam muito, e que lhes propôs que transformassem esse sofrimento em graça.
Não me parece que este meu raciocínio ponha em causa o que escreves a seguir: “É o mistério da redenção, quem ama está disposto a sofrer. E esse sofrimento tem em vista acabar com o verdadeiro mal, as ofensas a Deus, e o pecado. Esse é o mal, é esse que Deus permite, mas que nunca propõe”, simplesmente onde tu estarás a supor que o sofrimento parte de uma vontade activa de Deus para aquela pessoa, eu não concordo.
Da mesma forma, estou completamente de acordo com o que citas da irmã Bridget McKenna, mas tenho sérias dúvidas que ela mesmo concordaria com a tua conclusão, que é Deus quem “queira que uma pessoa tenha cancro, para curar o mal espiritual de outras, ou dela própria”.
Finalmente, no fim do teu texto lamentas que “Achamos que o facto de haver uma vontade de Deus em relação a tudo o que temos que decidir, diminui de algum modo a nossa liberdade”
Eu não acho nada disso. Saber que há uma vontade de Deus em relação a tudo o que eu tenho que decidir mostra-me que Deus me ama como um pai e me acompanha intimamente, em tudo na minha vida. Ele sabe quantos cabelos tenho na cabeça (e nem o culpo por serem poucos!).
O que eu acho é que o facto de Deus condicionar as coisas que eu tenho que decidir na minha vida diminui, e muito, a minha liberdade. Por isso tenho a certeza que não o faz.
E pronto. Peço desculpa pela extensão da resposta e pela sua demora...
E aproveito para convidar outras pessoas a opinar sobre este assunto, seria uma pena a discussão ficar resumida a mim e ao Silveira quando há com certeza outras opiniões válidas para partilhar.
Beijinhos, abraços e santa quaresma!
sexta-feira, fevereiro 27, 2009
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2 comentários:
Não penses que te safaste, mal tenha tempo responderei. Seria injusto teres este trabalho todo, e a conversa acabar aqui.
Quantos são, quanto são?!
VENHAM TODOS!
Mas por acaso, era bom mais alguém comentar. Duarte, com a tua formação teológica, não opinas?
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